Todos os dias Amanda acordava com o seu habitual mau humor matinal. Olhava-se no espelho e desejava não precisar cumprir a agenda de compromissos. Nos primeiros momentos do dia, comunicava-se por monossílabos: “sim” ou “não” e quando obrigada a dar respostas mais elaboradas, irritava-se profundamente. Com o semblante apático, justificava aos curiosos e a si mesma um sussurrado: -cansaço. Enquanto as horas passavam, Amanda aos poucos liberava pequenas manifestações de contentamento até que, quando finalmente sentia-se pronta para começar o dia, ele já se fora. Repetidamente isso acontecia, desde que se reconhecera como adulta. Um certo dia, ao realizar o costumeiro ritual em frente ao espelho, percebeu um pequeno sinal branco no canto direito da boca. Acreditou não ser importante e ignorou. No outro dia, o pequeno sinal aumentara para algo mais perceptível. Procurou disfarçar com uma generosa camada de maquiagem e seguiu o dia normalmente. Na manhã seguinte, a marca convertera-se em uma larga mancha resistente aos cosméticos. Enquanto analisava o seu reflexo em busca de uma rápida solução, percebeu que todas as vezes em que esticava os lábios como se estivesse sorrindo, a mancha perdia-se entre o contorno das bochechas. Decidiu que naquele dia sairia sorrindo a todos, na esperança de evitar constrangimentos ou indagações relacionadas à sua aparência. A princípio, este comportamento causou estranhamento em todos que a conheciam, mas no decorrer de poucos dias, até a preferiam assim. Sorrir já não parecia mais um esforço. Estava condicionada e até sentia-se bem. Os dias tornaram-se leves e inclusive passou a ser vista como uma pessoa simpática. Em uma bela manhã, ao fazer uma reflexão frente ao espelho, lembrou-se do motivo que gerara sua transformação e percebeu que a mancha havia diminuído. No dia seguinte, quase não se via o pequeno sinal e no próximo amanhecer, assim como a mancha havia surgido misteriosamente, desaparecera por completo. Há quem diga o contrário, que tal acontecimento ofenda a coerência, mas a partir desse dia, Amanda acreditou que a tal mancha pudesse ter alguma relação com a sua sisudez e, por via das dúvidas, nunca mais passou um dia sem sorrir.
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