"A rejeição da Igreja nascente e a perseguição pelas autoridades judaicas fez Paulo escrever algumas linhas que, tiradas de seu contexto, alimentaram no futuro o antissemitismo: “[Os judeus] não somente mataram o Senhor Jesus e os profetas, mas também nos perseguiram; eles não são do agrado de Deus, e são inimigos de todos os homens” (1Ts 2,15). No entanto, o NT não culpabiliza sempre os judeus; sabe que em Jesus estava em jogo um plano de Deus que ultrapassa a história. A morte, sem deixar de ter responsáveis, era superior a todos os que estavam no meio dela. Tanto Paulo quanto o autor dos Atos dos Apóstolos veem a Deus como primeiro ator e absolvem os judeus porque não sabiam o que estavam fazendo. “Agora, irmãos, sei que agistes por ignorância, como também vossos chefes. Deus, porém, deu cumprimento ao que já anunciara pela boca de todos os profetas: que o seu Cristo devia padecer” (At 3,17-18). “Pois, na verdade, uniram-se nesta cidade contra teu santo servo Jesus, que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos com os pagãos e o povo de Israel, para executarem o que a tua mão e vontade predeterminaram que sucedesse” (At 4,27-28). Se tivessem sabido quem era Jesus não o teriam crucificado: “Se os príncipes deste mundo o tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória” (1Cor 2,8). O antissemitismo nasce de uma leitura falsa do NT e de um paralogismo. Decênios de anos depois de a Igreja confessar explicitamente a Jesus como Filho de Deus e enquanto tal Deus, uma dedução macabra levará a afirmar: se Jesus é Deus e os judeus o mataram, os judeus mataram o próprio Deus (deicídio); portanto, são culpáveis pela morte de Deus119. Nenhum crime mais horrendo do que este e, para saldá-lo, exigiram a morte de Jesus, não somente os judeus que naquele dia exerceram a autoridade, mas todo o povo e cada membro do povo, os contemporâneos de Jesus e os que vieram depois. Cada judeu individualmente foi visto como culpável pela morte de Cristo. Os ecos desse grande erro teológico e desse crime de lesa-majestade chegam até as câmaras de gás em Auschwitz. A Igreja Católica esclareceu esta doutrina no Vaticano II (cf. NA 4) distinguindo os líderes do povo de então, o povo enquanto tal e cada um de seus membros. Ao mesmo tempo sublinhou que o decisivo na morte de Jesus não é quem o matou, mas como e porque morreu. Os verdadeiros protagonistas ativos e passivos dessa morte, para além dos de caráter histórico, são os de caráter teológico: o amor de Deus é um deles e o pecado de todos os homens é outro. Desta forma a cruz é, por um lado, o sinal do pecado dos homens, e, por outro, símbolo do amor e do perdão universal de Deus. Em outra obra expus como a cruz de Jesus é simultaneamente um crime, um símbolo e um mistério120. À luz dessa destinação universal da morte de Cristo (“morreu por todos”, etiam pro nobis), descobrimos a responsabilidade de todos em sua morte. Perante sua inocência, seu silêncio e sua intercessão agonizante, todo homem de boa índole se reconheceu pecador e suplicou seu perdão. Uma vez perdoado, na alegria da reconstrução pelo amor, se deu conta da verdadeira natureza e das consequências do pecado. Diante do Crucificado todos descobrimo-nos pecadores e compreendemos que “Cristo morreu por minha causa (sou um pecador) e morreu a meu favor (para que eu seja justo e filho de Deus)”. Entretanto, uma comunidade de discípulos, dispersos, traidores ou pecadores perdoados por Deus, não poderia sair em busca dos culpados pela morte de Jesus. Culpados eram também eles, e o somos todos à medida que fomos e continuamos sendo pecadores por negar a Deus e ao próximo em nossa vida real: humilhamos os inocentes, criamos pobres, rejeitamos os profetas, ignoramos os santos. Isto significa que se tivéssemos estado lá, também nós teríamos colaborado na morte de Jesus. Esta morte é o resultado final da ação de alguns por suas injustiças ou más obras, por omissão de outros, por distanciamento e falta de solidariedade para com a pessoa acusada, pelo pecado de todos por não sermos pessoas do bem. Jesus morreu porque atentaram contra Ele e, sobretudo, porque ninguém se arriscou a defendê-lo. A consciência de que fazemos o mal e omitimos o bem, cada qual ao seu tempo, levou a descobrir que todos somos culpados pela morte de Cristo, porque em cada ser humano que julgamos, pelo mal feito ou pelo bem omitido, estamos reproduzindo aquela situação. “Gemei, humanos, todos pusestes nele vossas mãos”, diz o poeta A. Lista. Já, A. Machado confessa: “Nós turvamos / a fonte da vida, e o sol primeiro, / com nossos olhos tristes, / com nossa amarga prece, / com nossa mão ociosa, / com nosso pensamento / – Nascemos no pecado, / vivemos na dor. / Deus está longe!” (Poesía y prosa [Madri 1989] II, 563)."
— Olegario González de Cardedal: Cristologia, pp. 154-156